Gisele Bündchen aparece fazendo ioga no Arizona e escreve #gratidão. Gabriel Medina se prepara para uma competição e repete a legenda. Luana Piovani toma sol na praia e também agradece. Alex Atala posta um santuário no Japão e coloca o emoticon (símbolo) das mãozinhas unidas. Estes são só alguns dos 430 mil posts do Instagram (#grateful, a versão em inglês, passa dos 4 milhões) marcados com uma das hashtags mais populares da vez. É um tal de agradecer por conquistas, amizades, família, viagens, paisagens e comidas que a palavra, tradicionalmente restrita a discursos religiosos, ganhou novo fôlego. Desta vez, mais pop. Há variações do mesmo tema. Há quem agora poste apenas as mãozinhas. Outros escrevem: #gratidãoeterna, #gratidãoaouniverso, #gratidãotododia e por aí vai.
No lançamento do seu livro A moda imita a vida, o publicitário André Carvalhal, que é usuário do termo no Instagram, chegou a fazer um carimbo com a palavra gratidão para estampar as dedicatórias. Tudo começou há cerca de um ano, quando resolveu fazer cursos de autoconhecimento. Assistiu a aulas na Casa Sou.l, participou de palestras da Arte de Viver e conheceu a comunidade alternativa Piracanga, no sul da Bahia.
“Me conectei com tribos que tinham linguagens próprias. E ‘gratidão’ foi o que mais me emocionou. Era sempre usada pelas pessoas mais conectadas energeticamente. Para mim, tem um sentido mais forte do que o obrigado”, conta ele, que viu o termo passar de exclusivo de certos grupos para virar um meme na rede social.
Anna Azambuja, diretora de comunicação da Sociedade Budista do Brasil, concorda que a palavra “obrigado” pode denotar algo como obrigação. “Gratidão se aproxima mais do sentido que ‘obrigado’ tem”, diz Anna. “No budismo, gratidão é considerada uma qualidade saudável a ser cultivada na mente, bem como amizade amorosa, mudita (contrário da inveja) e compaixão”, explica
O acadêmico Domício Proença ressalta que gratidão significa reconhecimento por algum benefício. De modo geral, costuma-se expressar gratidão a alguém que nos prestou um serviço, nos fez um favor ou nos trouxe ajuda. O curioso, ele observa, é que nas redes sociais a palavra não é destinada a alguém específico. “Nesse espaço da rede social, a palavra continua com a significação básica: ser grato. A novidade é a forma de passar a mensagem, que agora se centraliza no reconhecimento pelo benefício e ilustra, com as imagens, a razão dele. Amplia-se o seu uso para além dos arranjos usuais da língua. Em síntese: novos tempos, novas tecnologias, novas linguagens, novas propostas de comunicação”, comenta Domício.
Hashtags como estas surgem para marcar um hábito cotidiano e criar um discurso coletivo e colaborativo, segundo Fabio Malini, coordenador do Laboratório de Pesquisa sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo. O especialista em redes sociais notou que #gratidão muitas vezes acompanha termos como felicidade, amor, viagem, vida e família.
“Entre os significados que essa tag carrega está o de que a vida vale a pena. As pessoas celebram muito o próprio corpo, a relação com a natureza, as paisagens, etc. A hashtag vira uma espécie de bordão do bem”, observa Malini. “Há quem veja essas postagens a partir de um ângulo exibicionista, mas, nesse caso, acho que é um movimento psíquico interessante: o exercício dos usuários para construir uma narrativa sobre si mesmos que seja atraente para os outros e que faça também com que eles se admirem.”
A psicanalista Monica Donetto Guedes acredita que o termo vem sendo usado como um contraponto à culpa pela exposição excessiva. “Existe um viés de usar a palavra como uma desculpa para se expor de forma menos arrogante. É uma maneira de mostrar que você está bem sem passar uma imagem vaidosa, como se a palavra tivesse o poder de minimizar a culpa, reparar aquela exposição ou até ser uma proteção contra o olhar crítico. Brincando com as possibilidades do Instagram, a gratidão é como um filtro de proteção psíquica ao ataque do outro”, comenta ela, que cita o livro “Inveja e gratidão”, de Melanie Klein, como uma boa fonte para entender o comportamento contemporâneo.
Carvalhal acredita que a legenda foi banalizada: “Virou quase piada para certas pessoas. Tem quem tenha adotado genuinamente, mas tem muito de modismo. Para alguns será passageiro, para outros, como eu, entrou para a vida.”
Carolina Bergier, empreendedora social e co-fundadora da Casa Sou.l, concorda que a popularidade da hashtag pode ter diluído o verdadeiro sentido da palavra gratidão. “Eu acho engraçado a palavra ‘obrigada’ ter virado ‘gratidão’, que tem uma conotação sagrada. As pessoas se conectam com a palavra, mas podem ainda não se conectar com a sensação. Ao mesmo tempo acho válido a palavra ter se espalhado, já que isso pode fazer com que pessoas busquem realmente uma espiritualidade. Talvez elas não sintam a gratidão, mas querer mostrar ao outro que desejam senti-la já é um caminho, um primeiro passo. Acho que o mundo está tão louco que o inconsciente coletivo está pedindo gratidão”, afirma Carolina, que não usa gratidão ou obrigada e sim um “te agradeço”. “Acho mais suave.”
(O Globo)
Nota: Conforme comentou um doutorando em Filosofia, amigo meu, “essa é mais uma aparente inocente mudança nos padrões. Mas o que se quer estabelecer é um descompromisso, a perda do sentido de dever e obrigação, sendo substituído por uma noção vaga, mística e pseudorreligiosa, obviamente, de ‘gratidão’, mas que no fundo é um esvaziamento mesmo do sentido de obrigação. Isso significa que perante Deus, por exemplo, só temos ‘gratidão’ e não mais uma obrigação com Ele. Já vi muitas pessoas religiosas entrarem nessa onda de ‘gratidão’, sem perceber o que está por trás disso.”